A favela que vira tese de doutorado

Créditos: Acervo pessoal

Escrevo esse texto em lágrimas, muito emocionado, pois o que aconteceu no último fim de semana foi um divisor de águas. Eu e Mariluce Mariá fomos convidados pelo amigo e agora doutor Junot Maia, um jovem estudante da Universidade de Campinas (SP), de 30 anos, que nos fez protagonistas de um novo momento da história do campi. Durante mais de quatro anos de pesquisa e preparação da formação da sua tese de doutorado, ele escolheu a nossa trajetória de vida e embate para ser o ápice do seu trabalho acadêmico.

Junot é um jovem visionário, que deslumbrou e dedicou parte da sua história a contar a nossa historia e que surpreendeu a todos com um desfecho apoteótico e lindo. Ele veio diversas vezes aqui ao morro e, em suas pesquisas conosco, se deleitava com os fatos relatados por mim e Mariluce. Em cada visita, era visível o empenho e o desejo dele de ser fiel aos relatos – e foi muito além do que conseguiu captar. Ele humanizou tudo e trouxe luz em meio às trevas que nos permeiam cotidianamente.

Um menino franzino, de cor branca, visivelmente diferente dos demais moradores, que nunca se intimidou com o que iriam pensar dele e que foi fundo, vivenciando de forma verdadeira a sua pesquisa. Aqui, fez amigos, sempre era bem recebido e se sentia em casa. Nas inúmeras vezes em que nos reuníamos para responder aos questionamentos de sua pesquisa, nos encontrávamos no Bar do Mosquito, no Inferno Verde, uma das localidades do Complexo do Alemão. Sempre parecia uma festa, regada com a cerveja gelada do bar e a deliciosa comida da Dona Nevinha, matriarca da família e seus quitutes divinos. Em outros momentos, rolava aquele churras com a melhor carne de sol do Brasil feito pelo amigo Alex do Mercado da Alvorada, sempre encomendada para o visitante ilustre que passou a ser morador temporário.

O mais engraçado disso tudo é que nem eu nem a Mari não fazíamos ideia do que seria e para que serviriam todos aqueles questionamentos, onde aquilo tudo ia dar, para que serviria tudo que estava fazendo, onde aquilo seria aplicado. Tínhamos apenas a certeza de que tudo o que Junot estava fazendo seria bom para todos nós. Passamos a sonhar juntos com ele e embarcamos a caminho do grand finale, o dia 25 de agosto de 2017, mais de três anos depois.

Fomos de avião para Campinas (SP). Junto conosco estavam as ilustres doutoras Adriana Facina, Pâmela Passos e Adriana Carvalho, que fizeram parte da banca examinadora. Quando adentramos a Unicamp e vimos aquele auditório cheio, não imaginávamos como seria aquele dia majestoso para a história acadêmica.

Com a abertura das arguições, o então futuro Doutor Junot abre aquela tarde com a apresentação da tese que defendeu, com o curioso título de Fogos digitais – Letramento de sobrevivência no Complexo do Alemão. Usando o nosso perfil e página da rede social do Complexo do Alemão como referencia, desenrolou uma tese mostrando que os moradores da favela conhecem os meios de sobreviver ante as atrocidades impostas por todas essas violações de direitos que estamos enfrentado cotidianamente. Foi muito impactante o momento em que eu e Mari fomos convidados a fazer parte da banca examinadora, dando a todos um momento de espanto e trazendo à baila uma quebra de protocolo, inserindo-nos dentro do contexto daquele momento histórico e nos colocando na apresentação da sua tese com direito de fala e explanação. Num desfecho magnífico e esplêndido, quando lágrimas se misturaram à emoção que tomou conta de todo auditório, vimos um encerramento digno de final feliz num filme onde brada a voz dos que sobreviveram a guerra.

Por fim, Junot Maia foi consagrado doutor em linguística aplicada e sua tese entra para os anais da história, consagrando a simples história de dois favelados sonhadores que viram naquela tarde seus posts das redes sociais sendo mostrados como uma prova de que vale a pena continuar agindo em meio às trevas densas das atrocidades. Obrigado, doutores amigos, obrigado, mestres, por nos fazerem ir além dos becos e vielas da favela. Obrigado, dra. Denise Bertoli Braga e também dr. Daniel Silva. Obrigado, dr. Junot Maia, pela coragem de todos vocês. Toda a favela do Complexo do Alemão agradece.