A favela é uma Caixa de Surpresa

Em sua estreia como colunista, Marcus Galiña conta a trajetória do resistente Caixa de Surpresa, da Vila Aliança

Em meados dos anos 80, a cena musical estudantil bombava em Bangu, Zona Oeste do Rio. O Colégio Estadual Daltro Santos e o Colégio Bangu, que era privado, promoviam festivais estudantis que mobilizavam alunos e moradores do bairro que tivessem bandas. Na Nova Aliança, o jovem Waldemir Correa, o Mimi, então, com 15 anos, juntou uma turma e montou o grupo Cavernas, que cantava, segundo ele, as “guerras do mundo” e os problemas familiares. Leidimar Machado também cantava neste grupo. Os dois eram vizinhos, se conheciam desde os 7 anos de idade e eram crias da favela.

Nos ensaios, a criançada colava. Além dos festivais, eles também tocavam em outras escolas, ruas e praças. Mimi percebeu ali o poder da arte para atrair e envolver a molecada. Mas, como coletivo sempre tem treta, depois de um tempo rolou um racha e o grupo se desfez. Mimi, porém, resolveu tocar o barco e criou um novo grupo, agora denominado Caixa de Surpresa. O Caixa de Surpresa avançou. Não era mais uma banda, era um grupo que utilizava a música, o teatro e a dança como dispositivos para promover debates e conscientização através da arte.

Em algum momento desta história, Waldemir e Leidimar se casaram. Ela trabalhava com análises clínicas, ele como eletricista de painel. O trabalho cultural-social do Mimi seguia em paralelo, em ações pontuais. Ele circulava pelas universidades, movimentos sociais, fóruns, conselhos, seminários, sempre articulando, conhecendo gente, buscando se aprimorar e divulgar o seu trabalho. Moraram seis anos em Duque de Caxias, tiveram um filho. Em 1999, resolveram voltar para a Vila Aliança.

De volta à sua comunidade de origem, Mimi reuniu amigos e conhecidos que tinham filhos para uma conversa. Gostaria de iniciar um trabalho com as crianças, utilizando o teatro e a dança para fomentar o desenvolvimento da molecada, ampliar o repertório cultural e abrir horizontes. Dos anos 80 até o fim dos anos 90, a vulnerabilidade da juventude popular só tinha se agravado.

O trabalho começou com cinco meninas ensaiando na varanda da casa de Mimi e Leidimar.  A primeira coreografia foi em cima da música do filme “Gente como a Gente”. Leidimar ajudava a preparar o espaço, a fazer o lanche e acompanhava os ensaios. Waldemir, cujo forte agora era o teatro e não a dança, ralava para inventar passos e finalizar a coreografia. Além da dança, nestes encontros a meninada escrevia, desenhava, fazia relatórios, debatia temas e conversava sobre a vida.

Em um mês de atividades, o numero de crianças aumentou para 15. Já não cabiam todas na varanda. Tiveram que dividir em 2 turnos. E o trabalho foi avançando.

No ano 2000, receberam convite para participar do Fórum Estadual das Jovens Negras, em Rio das Ostras. Leidimar teve que acompanhar o grupo nesta viagem e, a partir deste momento, ela entrou de vez para a história do Caixa de Surpresa e não saiu mais. A diretora do Centro de Documentação e Informação Coisa de Mulher ficou encantada com a atuação das meninas do Caixa de Surpresa e propôs uma ação conjunta, buscando recursos para ampliação das ações.

Em 2001, realizaram o primeiro projeto em parceria. Leidimar assumiu a gestão, enquanto Waldemir seguia na articulação. Ampliaram a oferta de oficinas, agora que tinham recursos mínimos. Teatro, dança, reforço escolar, consciência negra, empoderamento da mulher, história africana: a varanda não conseguiria mais abrigar tantas ações e eles começaram a alugar espaços na comunidade.

Os anos foram passando e o trabalho foi sendo mantido, com muita raça e poucos recursos. Em 2004, o Caixa de Surpresa conseguiu criar o seu CNPJ.

Em um dos espaços alugados para ministrar as oficinas, ocorreu um problema. A filha da dona, evangélica, estava incomodada com a oficina de capoeira (“Coisa de macumba!”, segundo ela) e insistiu para que o trabalho fosse interrompido. Isso acabou acontecendo, desalojando o grupo.

“Ocupar e resistir” é um grito em voga na conjuntura atual. Mas, em 2008, a Vila Aliança era vanguarda e a galera do Caixa de Surpresa, agora trabalhando sob o sol inclemente da praça Nordeste, olhou para o prédio abandonado e saqueado do TRE, logo ali, do lado do campinho, e resolveu que a solução era essa. Três dias de intenso mutirão de limpeza tornaram o espaço habitável. Lá se vão 8 anos. Os prefeitos passaram e a “solicitação de uso” do espaço ainda não foi assinada pela burocracia municipal.

Em algum momento desta história, Waldemir e Leidimar se separaram, enquanto casal, mas a parceria deles no Caixa de Surpresa segue firme e forte, tocando um dos espaços culturais mais ativos da Zona Oeste. É um prédio de dois andares, com boa área externa, em parte coberta, com horta, mesa de ping pong, palco e bar. As paredes são cobertas por belos grafites, há uma sala espelhada de dança, a sala da administração e outras salas menores, onde ocorrem outras oficinas. As oficinas de dança afro e street dance estão sempre cheias. Na área externa, a diversidade cultural do bairro marca presença: tem roda de rima, roda de samba, capoeira com o Contra-Mestre Urso (que regularmente também ministra uma linda oficina de fabricação artesanal de tambores), Noite do Rock, Cineclube e muito mais.

Resolvi, nesta primeira coluna no portal Agência de Notícias das Favelas, prestar uma homenagem e um reconhecimento a todos os ativistas culturais de favela. Eles são muitos, estão em muitos lugares (Conhece algum? Cartas para a redação!), desenvolvem um trabalho muitas vezes com pouca visibilidade, poucos recursos, mas com muito impacto, que transforma a vida de muitos jovens. Toda favela é uma caixa de surpresa! E estes ativistas culturais da Vila Aliança ralaram muito e seguem ralando, mas colhem resultados e conseguiram construir uma instituição reconhecida a partir de muito trabalho e comprometimento.

Escolhi o Caixa de Surpresa porque reconheço a grandeza, a potência e a qualidade do trabalho desenvolvido persistentemente pelo Waldemir Correa, pela Leidimar Machado e toda uma galera que atua em parceria com eles, uma verdadeira e ampla família Caixa de Surpresa. Na verdade, o trabalho do Caixa sequer precisa do meu reconhecimento, porque eles já são o que são, já fazem o que fazem e já tem essa rica história. E esta história me inspira e me dá forças.

“O desafio é envolver as famílias ativamente. Tem dias que a gente não consegue trabalhar, tem dias que a gente não consegue entrar e as crianças não conseguem sair. Tem dias que  a gente fica desesperado vendo essas crianças em contato direto com tiroteio. A questão é da perda mesmo destes jovens para um poder mais cativante, que oferece tantas facilidades, perda do nosso público por bala perdida, o desafio de ter recursos suficientes para ter as ações funcionando… Fazer o que o governo deveria estar fazendo nas comunidades e não faz. essa é uma preocupação que a gente tem com quem a gente ama, com quem a gente viu nascer e crescer na comunidade. Nossa vitória e nossa fortaleza é a questão da determinação, da objetividade, de saber o que a gente quer fazer e de ter pessoas que acreditam no nosso trabalho”. Foram estas algumas das palavras que a Leidimar me enviou, por áudio no Zap, para a preparação desta coluna, e que me fazem refletir e refletir e refletir para agir e agir e agir.

Vida longa ao Caixa de Surpresa e a todos os ativistas culturais de todas as favelas do Rio de Janeiro, do país e do mundo!